domingo, 1 de março de 2009

Sociedade de Castas

Hoje fui almoçar em família. Eu, minha mulher, minha mãe e meu irmão mais novo. À Exceção de meu irmão, estávamos os três um pouco mais bem vestidos. Minha mãe vinha das compras, eu e minha mulher iríamos fazer as nossas depois. Meu irmão, no entanto, estava em casa, brincando comigo, antes de saírmos. Estava me aplicando alguns golpes de judô - ele batendo em mim, o que é meio humilhante, mas natural, afinal, apesar del ter apenas 12 anos e eu 33, ele é faixa cinza, quase faixa azul, além de ser do meu tamanho e, provavelmente, mais pesado que eu. Minha experiência no judô resume-se a assistir à aplicação dos golpes mais básicos e estudar suas técnicas, tudo na internet. Começo a treinar de verdade esta semana.
Voltando ao almoço, através do qual chegaremos às castas, eu, que já não tinha tomado café, fiquei assoberbado defome após o meu treino com meu irmão. Fiz ele se vestir às pressas para saírmos. Ele pegou uma camisa meio surrada da seleção brasileira, um short e um par de sandálias não lá muito novas também. Minha mãe até mandou ele vestir uma roupa melhor. Eu não concordei. Achei desnecessário. Iríamos apenas a um restaurante a quilo, razoavelmente bem frequentado, mas, ainda assim, um restaurante a quilo. Nada demais, depois voltaríamos para casa. Não julguei necessário.
Um fato, porém, omiti até agora, por tornar-se relevante apenas neste momento da narrativa. Meu irmão é negro. Adotado.
Na porta do restaurante, o porteiro, também negro, fardado, com um punhado de tíquetes na mão, liberava a entrada dos clientes entregando-lhes aquele papel onde ficam registrados os ítens consumidos, para o óbvio pagamento posterior. Quando meu irmão ia entrar, por pouco não foi barrado. O porteiro olhou para ele, pensou, repensou, e acabou percebendo que ele estava conosco e liberando a entrada. Estava tão nervoso que chegou a rasgar o papel que entregou a meu irmão. Acontece que eu não percebi nada disso acontecendo. Minha mulher me contou agora há pouco, à noite.
Que raiva senti. Pensei na sorte de eu não ter percebido. Não sorte minha, mas do atendente. Desejei ter notado, para perguntar a ele se julgava que meu irmão, por ser negro, como ele, não tinha o direito de estar ali. Senti vntade de vociferar ao funcionário que, com a sua idade, meu irmão estaria num trabalho para profissionais de nível superior, universitário. Senti raiva daquele cidadão que validava um sistema de castas no qual ele está num patamar baixo e quer destratar os que julga estarem em padrão inferior. Ele, atendente, poderia usar do seu pequeno poder para barra o acesso daquele negro mal-vestido, se porventura fosse ele uma criança pobre. É como alguns motoristas de ônibus que, em dias de chuva, propositadamente, passam por cima de poças de água e molham os pobres como ele que esperam no ponto. Senti mesmo vontade de ter notado para ...
Para o que? Colocar o atendente no lugar dele? Mostrar que, apesar de negro como ele, meu irmão pertencia a uma casta superiror e, portanto, ele lhe devia respeito? Meu Deus. Também eu estava a pensar com base no mesmo sistema de castas que levou o garçon a se comportar daquela maneira. Ele, talvez, temesse que a criança de fato estivesse sozinha, não pudesse pagar e ele, atendente, depois, viesse a ser questionado quando aquele menino não pudesse pagar ou pedisse, lá dentro, que alguém o fizesse, incomodando os membros da outra casta, inclusive, e sobretudo, o dono do restaurante, que poderia punir o atendente que, afinal de contas, está na portaria para evitar situações como esta. Para permitir aos que entram a ilusão de que lá dentro não há diferença de castas. Ou melhor, para garantir-lhes que não haja de fato. Ele está ali como um filtro social. Seu preconceito é desculpável. Ele está ali para isso.
O meu, no entanto, é imperdoável. Ao sentir a raiva do atendente, eu validava o sistema de catsas sim. Claro que a raiva veio do ato instintivo de defender os meus. Meu irmão menor, adotado, que está numa posição mais frágil. Mas o atendente também está.
No final das contas, foi bom eu não ter notado nada. Não ter dado vazão à minha raiva. Não ter feito o meu papel, pelo menos não hoje, para solidificar, validar esse inextricável, inescapável sistema opressivo de castas que rege a nossa sociedade.

2 comentários:

Ângelo disse...

Poots, Sei exatamente do que se trata.
Detesto em idêntica proporção esse sistema de castas.
Realmente, caso você tivesse notado, ia, tentando obviamente defender o nosso irmão, validar o sistema de castas, colocando o atendente "no seu lugar" e você num lugar muito abaixo do dele. Longe de mim estar criticando você, eu sei - e você também sabe - que eu faria igual(talvez muito pior) a você caso fosse eu a notar. É triste ver que estamos tão inseridos nesse sistema, que isso está tão arraigado em nós que, ao tentar escapar, podemos reiterar de maneira ainda mais cruel o "sistema de castas".

Velho, visite o blog desse amigo meu. Jamerson. Ele escreveu um texto muito bom sobre o jornalismo sensacionalista, há um tempo atrás, e eu fiz um comentário que acredito que você vá gostar. www.coisasqueinquietam.blogspot.com

Abraço do seu irmão, Ângelo Pinheiro

Jamerson disse...

Gabriel,
Fico muito feliz em perceber que o objetivo do blog está sendo cumprido. A ideia, além de falar das coisas que inquietam, é justamente criar um espaço para o encontro de pensamentos sintonizados como o nosso.
Deixa-me muito triste o fato de saber que o Uziel foi um bom jornalista um dia. Preferia acreditar que ele está desempenhando esse papel medíocre por pura e simples falta de opção e/ou formação. É muito lamentável perceber que ele sucumbiu à lógica voraz do capital e do sucesso a qualquer custo. E com isso vem sacrificando a população menos favorecida financeira e intelectualmente. São nas grandes comunidades periféricas como a minha (moro em Cajazeiras), que se pode verificar o tamanho de desserviço social que ele tem feito. A nós, resta apenas vociferar essa e outras coisas que nos inquietam...
A propósito, gostei muito do seu blog, de fato estamos reverberando em uníssono. Coloquei-o na lista de links do meu.

Grande abraço!