segunda-feira, 9 de março de 2009

Cada um na sua praia

Maria dançava na porta de casa. Ridícula e insuportável. O som, muito alto, além de incomodar os vizinhos, chamava atenção para o desastre da coreografia que ela pensava reproduzir. Acima do peso, com roupas justas, ela, no íntimo, sabia que estava ridícula, mas queria fingir não ligar. Eu já não aguentava mais. Sei que também estou derrubado, mas, porra. Não me submeto a isso. E na varanda pô! Se pelo menos ela trabalhasse, teria menos tempo pra isso. E eu teria mais tempo sem ela. Foda-se, vou me dar meu tempo. Como meu olhar transparecia um misto de desprezo, nojo e raiva, Maria percebe e reage, como sempre, com a sutileza de um hipopótamo.

- Que foi, Miguel? Vem dançar também. Tá massa aqui na varanda. Um solzinho bom nesse domingo. Daqui a pouco a galera chama a gente pra praia. E hoje a gente vai ter que ir. Nem invente, viu?

Ainda tinha essa. A orca -porque além de gorda é bruta -, não se dava, jamais, conta de qualquer vexame. A irritação me subiu à tampa.

- Vou pro baba da turma. É em outra praia.

- Que turma, homem?

- A do trabalho. Você não conhece.

Não tinha para onde ir, mas sabia onde não iria: à praia com Maria. O tempo passa. Chega a turma, lá dela, e encontra Maria saltitando passos absurdos, suada como um bando de porcos perseguidos em dia de abate e guinchando como os que são alcançados e sangrados até a morte - rito, aliás, que ela supõe ser cantar. A vergonha, diminuída pelo hábito de passar por ela todo domingo, desta vez era aliviada ainda mais por outros dois fatores: Maria ia sozinha e eu também. Para qualquer lugar.
Sem banho, nem nada, em coisa de cinco minutos, ela entra e sai, suada como antes, desta vez exibindo o corpanzil num fio dental vermelho. Acho que cheguei a corar, mas baixei o rosto, para esconder dos outros a minha reação e, também, deixar de ver a deles, que sempre gozavam dela e, por conseqûência de mim. Marilda, a gostosinha da rua, e também a mais escrota, fazia questão de estar sempre com Maria. Se valorizava assim. Se chamavam de Mari-Mari. Bem poderiam ser a bela e a fera.

- Não vem com a gente, moço? - Disse ela, olhando para mim. Nem tá pronto...

Maria, num de seus mais desagradáveis e costumeiros hábitos, o deme interromper antes mesmo que eu comece, responde:

- Que nada, menina. Vai pro baba com os amigos. nem sei onde... Ah. Esqueci a bolsa com o bronzeador. Hoje o óleo de amêndoa vai comer no centro... Uhu... pode esperar no carro, galera.

Esse gritinho me matava. Aquilo tudo. O que me fez chegar àquele ponto? Estudei. Fiz faculdade, mas nunca consegui um emprego que prestasse. Me conformei em ser carteiro. Nunca busquei nada além. Agora, olhava aquela turma feia, naquele carro velho, gente que nunca leu nada, quem dirá escrever... A Maria então! Ô anta. Ela era como a vaga nos Correios. Uma merda, que no início parecia melhor, e agora revelava toda a sua insuficiência. Salário fudido, mulher fudida. Levanto a cabeça triste e miro o carro: um gol velho, lotado - e ainda faltava Maria -, quando percebo que a outra Mari olhava para mim de um jeito estranho, diferente. Com uma espécie de sensualidade grotesca. Mas, para quem tem Maria, era como se a Vênus de Milo me fitasse em todo seu esplendor. Ela percebe que reajo e salta do carro. Vem até mim, rebolando como quem ganha a vida assim - havia boatos, bem fundados inclusive, de que esta fosse a forma de sustento da garota: o mais antigo dos ofícios. Mas nada disso me impoprtava. Estava deslumbrado. Ela para na minha frente e pergunta:

- Onde é a praia que você vai? Tô pensando em dar um pulinho lá...

- Onde você quer que seja a praia?, respondo num rompante de coragem, aumentado significativamente pelo medo de que Maria chegasse e visse a cena. Maria aponta no corredor e a minha nova Mari fala:

- Hotel Nemésis...

- É Nêmesis -, corrijo a pronúncia, pela força do hábito de querer parecer melhor do que sou, ou, pelo menos, mais do que eles são.

- Daqui a 40 minutos. É o da esquina.

Ela responde quase ao mesmo tempo em que Maria a pega pela cintura. Mari e Mari se juntam. Só agora percebo que elas têm algo em comum. Uma vulgaridade que me atraiu em Maria, uns 20 quilos atrás, e que estava me convidando ao hotel no quilo certo hoje. Todos saem. Eu corro para tomar meu banho. Em quinze minutos estou no hotel. Paso vinte minutos pensando. Maria era legal. A culpa, talvez, fosse minha, sempre corrigindo os outros, com meus livros velhos, dos quais lia uma ou duas páginas e, com o conteúdo da orelha, humilhava aquela turma, numa guerra covarde, onde quem tem um braço e um cacete bate nos aleijados. Eu aleijei Maria. Tomo um gole de conhaque. Penso melhor. Tomo o copo todo. Os dois copos. O meu e o de Marilda. Desço do quarto, pago a conta e saio. Na esquina, encontro a outrora nova e agora já antiga Mari chegando. Mais erótica do que nunca. Não restava dúvida, se não era profissional, não era por falta de talento.

- Beleza. Chegamos juntos. Sinal de que a coisa vai ser boa. - diz ela, antecipando delícias com as quais eu pensara durate coisa de 15 minutos, até a minha chegada no hotel que deixei. - E então, tá indo pra onde? É do outro lado, rapaz.

- Não vou mais. Minha praia é outra. Decidi encontrar a galera. A Maria...

Tomo um tapa no rosto e ouço uns dois xingamentos que, de tão primevos, nem merecem ser repetidos. Ela vira de costas para ir embora. Ajeita o biquini por baixo da saída de praia. O conhaque faz mais efeito na minha cabeça. Como é gostosa.... Ah, foda-se. O hotel já está pago mesmo. Ainda tenho uma hora e poucos minutos. Mais que suficiente. Não vou durar nem 15 com ela.

-Ei, Mari. Tava brincando.Vamo lá. Já tá pago e tudo. Acha que eu ia perder essa?

Com um riso de criança ela me olha. Os olhos brilham de alegria. Chega a saltitar.

- Agora quem não quer mais sou eu. Vai trás de Maria. A sua é ela. Você, comigo, nem pagando...

A alegria dela era um lampejo de inteligência. No terreno em que dominava, o sexo, ela desvendou a minha alma. E enquanto ela se afastava, rindo agora alto, eu gritava:

- Volta, Mari, eu pago, eu pago.

Um comentário:

Ângelo disse...

Gostei do conto.

Tem algo de Nelson Rodrigues nele.
Achei apenas que você deu algumas dicas a mais, talvez fosse melhor o leitor deduzir que ela desvendou a sua alma sem você contar, não sei.

Bem diferente do que você costuma postar. Gostei do estilo. Gostei especialmente da parte onde o Miguel diz que aleijou a esposa. Muito bom.

Conforme você falou, vamos publicando, vamos colocando tudo no papel(ou melhor, na telinha).

Grande abraço e vamos escrevendo.