sábado, 7 de março de 2009

Sob o signo da pobreza

É triste, torpe, mas habitual. Paro diante do semáforo, caminho que faço diariamente para chegar em casa, e me deparo com ele fechado. Um senhora magra, carcomida, cujos andrajos transparecem a pobreza indubitável vem a mim. No rosto, um que de dor mistura-se à certeza de que ninguém vale nada no mundo, mas - às favas! - só resta a ela pedir. Mas não pede. Ao menos, não com palavras. Bate na janela do carro e olha. A expressão que traz na face fulmina e condena quem a recebe no climatizado ambiente do carro fechado. Automaticamente, sem pensar, faço um gesto de negativa, com o dedo; depois ainda procuro, mas era verdade - não tinha dinheiro para ela - mera coincidência, eu já tinha negado antes. Observo a miserável velhinha pelo retrovisor e vejo que ela reproduz a mesma cena diante de todos os carros. Sem dizer uma palavra, simplesmente bate no vidro e lança, com a crueza do seu olhar, a pobreza para o lado de cá.
Não nos adianta enganar a nós mesmos. Estamos do outro lado! Todos nós que, diante de um computador, nos pomos a filosofar, pensar sobre a vida, o fazemos às custas de uma sociedade que fomenta a miséria, que precisa da fome alheia para viver. Para que você use o seu micro, toda uma linha de trabalhadores mal pagos, nas mais diversas partes do mundo, se esfalfam de trabalhar. A globalização permite que eles sempre ganhem pouco para que paguemos menos -ainda que muito diante do ínfimo que custou fabricar os produtos que eles jamais usarão -e possamos, assim, comprar sempre. E eles, os do chão da fábrica, olham para si mesmos e dizem que vão bem. Pois conhecem o vizinho, que mora na mesma favela - sim, eles vivem em favelas. Este vizinho não deu a mesma sorte. Está do lado de fora da indústria, implorando por um biscate nos sub-empregos das empresas de bonés, camisas. Apenas prende uma etiqueta, costura um símbolo. Pode ser um jacaré da Lacoste ou a inconfundível marquinha da Nike. Ganha, por vezes, menos de cinco dólares por dia. Este, no entanto, também se dá por contente. Ele conhece o ex-vizinho. Aquele que está no andar de baixo, na sub-favelização. O que mora nas ruas, pedindo, como a velhinha do semáforo.
Em Salvador, esta miséria nos bate no rosto. Está deflagrada uma guerra urbana, ainda contida sabe-se lá por que causas ocultas. O miserável pode arrombar o vidro, mesmo porque são muitos deles e poucos de nós. Sim. Há este eles e nós, do qual queremos fugir. É confortável viver a ilusão de que, por entendermos o fenômeno, somos menos parte dele. Não é verdade. agrava o nosso ero, a nossa lamentável inépcia, o noso descaso, que com palavras dingimos não ter, pelo próximo.
Quando os Fariseus ouviram Jesus falar dos males da ignorância sobre os valores do amor para com o próximo, a solidariedade imprescindíve para que a máquina do mundo rode bem, eles vociferaram: "acaso falas de nós, Rabi?". Ao que o Cristo respondeu de pronto que não. O caso deles era ainda pior, conforme concluiu o mestre: "Se fossem ignorantes não teriam tanto pecado".
Saber é poder. E nós sabemos. Mas o que fazemos? Sentamos e escrevemos? Abrimos as comportas da nossa mente para analisar, dissecar o cotidiano? A pobreza não vai perdoar essa postura por muito tempo. Para a sorte de egoístas como nós, os miseráveis ainda são mansos, como burros que apanham no lombo e, apesar da força que têm, não fogem nem revidam. Quando se tornarem ferozes, seremos extintos, tomaremos merecidos coices ou teremos de nos adaptar a um mundo novo.
Esta semana estive, pela primeira vez na minha vida num catveiro - isto nunca ocorrera antes nos meus 13 anos de reportagem. O quarto era quente, pequeno. Tinha apenas uma cama e a corda que revelava o terror que o sequestrado viveu, amarrado ali, encapuzado, por mais de 24 até que conseguisse fugir. A vítima era um homem pobre. Dono de um mercadinho não podia pagar o resgate. Imaginar o inferno de um pobre que é sequestrado e não tem com o que que saciar a ganância dos miseráveis é algop que, de tão distante, não vale nem a pena tentar fazer, para não cair no ridículo de supor que é possível traduzir um inferno que não se vive. Ele iria morrer, caso não escapasse. Os miseráveis estão matando os pobres. Nas guerras de gangues, disputas por bocas de fumo, eles se matam, mas não apenas entre traficantes. Para tocar o terror, matam os vizinhos. Amigos de infância. Não têm amor a ninguém. A sociedade não lhes permitiu desenvolver este sentimento, como não nos permite ser mais solidários. Para que eles amassem, seria preciso abdicar das poucas possibilidades que a brutalidade ainda facultam de libertação da miséria total; bem como para que nós fôssemos solidários seria necessário reivindicar dos nossos luxos, ou mesmo pequenos przeres, quase sempre supérfluos. Cada um com seu egoísmo e a máquina vai funcionando. A roda gira, mas gira mal. Tritura, esmaga. Hoje, os miseráveis. A nossa vez, no entanto, chegará.
Mais um registro sobre o cativeiro. Não ficava num local deserto, como vemos nos filmes. Ficava entre várias casas, de onde outros pobres ouviram, certamente, os gritos de pavor, pedidos de socorro. Das suas janelas, assistiram, pois o sequestro foi à tarde, a chegada dos bandidos, a bestialidade com a qual trataram o empresário e nada fizeram. No dia que fui ao cativeiro, acompanhado por diversos agentes policiais, eles, os vizinhos, se escondiam ao perceber a nossa aproximação. Quando chegávamos antes e conseguíamos falarcom alguém, não nos respondiam ou apenas diziam não saber do que se tratava. Os vizinhos do terror, aqueles que, diferente de nós, conhecem de perto o inferno, estes, por nada, revelam o nome do diabo. Pois em Deus, alguns ainda crêem, depositam fichas num investimento futuro. Muitos, como Nietzche, porém, acreditam que ele está morto - para eles, que sofrem, e para nós, que ignoramos este sofrimento - talvez seja verdade. Quem sabe é assim que se mata Deus? O diabo, no entanto, está vivo, sorrindo às escâncaras diante deles. E, com o canto da boca, ele já faz seus primeiros gracejos para nós.

Um comentário:

Ângelo disse...

Gabriel.

Gostei bastante do texto. De uma tristeza profunda, é verdade. Acho que você foi num bom ponto quando dissecou a velhinha da sinaleira. Muitos de "nós", já que realmente existe o "nós" e o "eles", sente por eles apenas uma tristeza vazia, fruto muito mais do choque de ser incomodado pela imagem desagradável aos olhos do que de uma análise social. Uma visão verdadeira do problema.
Acho que a muitos de nós falta isso. Somos culpados sim por saber, e mais culpados ainda por nem tentar nos aprofundar nesse saber, nos contentar em dar uma esmola e fechar o vidro ou mesmo dar uma negativa de dedos e arrancar o veículo. Ainda existem aqueles que se aprofundam no saber, porém não mudam a inércia. Permanecem parados, esperando essa temida reviravolta.

"Nós" entendemos o "Deus está morto" por via da eloqüência tenaz de um Nietszche, enquanto eles o percebem na prática. O Nietszche deles carrega uma pistola e alicia os seus filhos para trabalhar no tráfico.