quarta-feira, 4 de março de 2009

Crueldade x Hipocrisia

Já disse um filósofo que tudo aquilo que um homem faz os outros são capazes de fazer, por mais abjeta que seja a ação e por mais nobres que sejam os homens. A crueldade é algo atávico, que está impresso no DNA do ser humano, na bagagem cultural e anímica. Em tempos de imprensa livre e de sociedade amarga, sedenta de sangue, quando morte e tortura são expostas no dia a dia dos auto-declarados noticiosos, assistir a crueldade humana deixou de ser um exercício de imaginação, feito após leitura de romances, ou mesmo uma prática visual, porém fictícia, vislumbrada em filmes de terror. Hoje, é possível ver tortura real. Seja gravada por câmeras de circuito interno de segurança, seja pelas filmadoras de pais zelosos que suspeitam – e infelizmente confirmam – ter uma babá monstro em casa. Mais do que a exposição que a sociedade digital nos revela, o que choca é o quanto de maldade vem no bojo deste nada admirável mundo novo.

Mais há algo ainda pior que a crueldade exposta, descabida, por vezes mesmo exibida como troféu por gangues de traficantes ou torcedores. A maldade que se esconde por trás do véu da hipocrisia, esta me é mais aterradora. A maldade de um amigo que, simulando sê-lo, faz da sua vida um inferno. Trai você com a sua esposa, fazendo mal a, a ela e a si mesmo e a você, e depois convida o casal para uma viagem ou um jantar; fecha as portas para você no meio profissional, enquanto diz torcer pelo seu sucesso, ainda que para isso durma com o diretor ou faça qualquer sorte de chantagem; tortura animais de rua, enquanto finge pro mundo que é uma pessoa de bem; homens públicos que arrancam braços de empregados com serra elétrica nas suas propriedades, enquanto no púlpito senatorial defendem a honradez e a virtude.

São os sepulcros caiados dos quais já falou o Cristo. Nélson Rodrigues nos lembrou, como o messias bíblico, que a maldade dos bons é mais preocupante que dos maus. Aqueles, quando a cometem, são capazes de beber sangue de criança com groselha. Odeio essas pessoas. Mas consigo também repreender a mim mesmo por gastar os meus botões pensando nelas. Se não sou delegado, advogado, juiz ou homicida – alguém que pode pensar nessas pessoas e dar-lhes o destino merecido: a cela ou a cova -, por que ocupar-me com entes tão abjetos? Quantas vezes, ao deparar-mo-nos com tais figuras no nosso habitat, principalmente quando temos o infortúnio de sermos as vítimas da sua hipocrisia, perdemos a nossa alegria, o nosso humor, o nosso viço, o que há de mais belo naquilo que em nós nos faz humanos: a paz, cujo valor é tamanho que nada nem ninguém nos deveria poder arrancar. Que as ignoremos, isso sim. Que chafurdem sós no lixo que vive em suas almas. Que se percam e se devorem, se matem em seus infernos, apodreçam na desgraça que emanam em torno de si como uma aura pútrida. São espíritos que fedem.

A vítima não deve sofrer e sim o algoz, por isso o Cristo recomendou mansidão aos aflitos, paz aos que sofrem. Que não resistíssemos ao mal. Déssemos a cara a tapa, uma duas, três vezes. É duro. Nunca consegui. Mas, pela paz vivenciada por ele que, ainda na cruz, pediu perdão para os que assim com ele procediam, sou de pensar que tal estado de espírito, por mais inalcançável que soe, deve ser perseguido como uma utopia. Uma meta referência. Um Postulado. A paz vale mais que essa corja de canalhas. E, como disse Paulo de Tarso (hoje estou bíblico), deixe a Deus a sua vingança. Pois é. Entrego essas almas a Paulo de Tarso.

2 comentários:

Ângelo disse...

Rapaz, esse foi o mais vicseral de todos os seus textos, gostei do estilo.
A cada dia mais eu vejo isso, como é difícil dar a cara à tapa. Oferecer a outra face. Por essas e outras que tento não me envolver em situação de briga ou de atrito. Não sou realmente de "oferecer a outra face". E outra, ai daquele que me trair, ai daquele. permito que me odeiem. Até entendo que às vezes sou detestável, mas que preservem a dignidade de transparecer e derramar todo nojo de que me tenham sobre mim. Como diria o citado Nelson Rodrigues, "que me cuspam a cara" mas que o façam com toda a verdade.

Gostei do texto, mexeu com alguns dos meus monstros internos.

Airosos amplexos fraternais(isso é que é ser prolixo...euehuhe)

Anônimo disse...

Seu texto me trouxe à memória esses versos inquietantes do Augusto dos Anjos:

"O HOMEM QUE NESTA TERRA MISERÁVEL MORA ENTRE FERAS,
SENTE INEVITÁVEL NECESSIDADE DE TAMBÉM SER FERA .
TOMA UM FÓSFORO.ACENDE TEU CIGARRO.
O BEIJO, AMIGO, É A VÉSPERA DO ESCARRO !
A MÃO QUE TE AFAGA É A MESMA QUE TE APEDREJA". (Versos Íntimos)

Realmente, "dar a outra face" é um tremendo desafio quando se tem que viver entre "feras".

Abraços.