terça-feira, 7 de abril de 2009

A bicicleta

- Não filhinho, papai não tem dinheiro – dizia ele entre lágrimas.
- Conserta minha bicicleta papai – dizia ele mesmo, fazendo as vezes do filho, chorando agora com mais sentimento.
- Me perdoa, meu filho, me perdoa – as mãos no rosto, em concha, tampavam destarte a vergonha. Vergonha da pobreza, de não ter podido atender aquele último desejo. Durante todo este diálogo interno, que ele externava em voz alta, como a querer que aquele grito sussurrado ao mundo, libertasse a sua alma de um pesar do qual só ele pode livra-se, o pai fitava o caixão do menino de 7 anos, morto esta semana no subúrbio de Salvador pela dengue hemorrágica.

Antônio Dantas, vigilante. Nunca pode pagar um plano de saúde para ele ou sua família. Uma mulher e três filhos; agora dois. Um, irremediavelmente ceifado. Passou mal numa quinta. Febre, dor de cabeça. A família medicou a criança. Usaram dipirona. Mesmo sem plano de saúde, eles têm televisão e, entre uma bobagem ou outra, assistem a um jornal, onde entre outras e outras bobagens, alguma notícia se salva. Sabem evitar o ácido acetil salicílico. Sexta feira, o menino passa melhor. Weslei era o nome dele. Fica de cama, vendo televisão. Entre um e outro desenho animado, um jornal - e a dengue de volta. A mãe, Marisvânia, assiste com ele. Desempregada, toma conta do filho. Sábado, ele piora muito. Vomita e começa a convulsionar. A mãe leva a criança ao posto de saúde. De lá, ele é encaminhado para o Hospital João Batista Caribé, o maior do subúrbio, distrito sanitário que tem também o maior índice de infestação de Dengue de Salvador.

- Ele me falou, doutor – diz ela, voltando-se para mim - o médico disse que era só uma infecção de estômago. Mas a outra médica já tinha me dito que podia ser dengue. As plaquetas dele estavam muito baixas (sic) – ressalta, numa prova de que acompanha com real atenção as notícias sobre a dengue, e que chama de doutor até mesmo um simples repórter como eu, não porque traje paletó, ou não apenas por isso, mas também porque os que têm acesso ao mundo que lhes é vetado (a ela, a seu marido e a seus filhos e seus vizinhos) são para ela e para todos os demais excluídos do subúrbio, doutores.

Foram cerca de 24 horas de agonia.

- Porque não transferiram meu filho de hospital, se eles não podiam cuidar? Por que ele não foi para o Couto Maia? – o choro abafa a fala da mãe, que já tem seu corpo abafado, fisicamente, por colegas repórteres, cuja sanha por conseguir a notícia, ou mesmo o depoimento justo no momento de maior dor como uma espécie de troféu ao mau jornalismo que tem sua audiência regada por choro e sangue, não permite que se sensibilizem com a situação. Chamam a isso de distanciamento jornalístico. Eu, que chegara adiantado e já colhera minhas entrevistas previamente, quando os pais estavam mais calmos, acompanhava de longe. Sentia, na dor dos pais, e em tudo naquele evento, uma vergonha muito grande. Vergonha de poder o que eles não podem, vergonha de precisar ter vergonha disso e também, como se não bastasse, vergonha pelos meus colegas. Eu, para entrevistar os pais, busquei, inclusive, chamá-los para fora da casa onde o corpo era velado, de modo que ficassem longe do filho, para que a lembrança, ao menos naquela hora, em que detalham a história, refazem angustiosos caminhos psíquicos, que ali a memória lhes fosse menos pungente, dolorosa. Procedimento inverso ao adotado, lamentavelmente, por alguns colegas, que, para minha vergonha profissional, ainda diziam, na vista dos parentes, aos seus cinegrafistas, que pegassem o menino de fundo na imagem. Os pais em primeiro plano. O corpinho, no caixão branco, de madeira simples, em segundo, cmo paisagem, compondo a cena. O que para eles é cenário, para mim é uma criança, um menino qoe ainda parecia vivo. Acariciado pelos pais o tempo inteiro, tinha os olhinhos abertos e parecia olhar para mim. Parecia, de alguma forma, culpar-me pela sua morte, apontar a mim e aos meus colegas como responsáveis por maximizar a dor dos seus pais. Parecia ter razão.

- Filhinho, perdoa papai, filhinho.
- Eu brinco com ela quebrada mesmo, papai, até o senhor poder consertar.
- Ô meu Deus, perdoa papai filhinho. Papai tinha que comprar comida.

Preciso pôr meus óculos escuros... Preciso esconder o choro... O que meus colegas vão pensar? Que tipo de jornalista sou eu? Onde o distanciamento? Onde a objetividade? Ponho a mão no bolso do paletó. Antes de retirar, lembro que os meus óculos, os que tinha ali aquela hora, não convinha usar. Ray Ban. Caros. Chamativos. Para que agredir ainda mais aquela família? Às favas com os meus colegas. Noto que dois, inclusive, conversam baixinho. Riem e apontam para mim. Uma terceira me mira como se meu choro fosse hipocrisia de político. Sinto uma certa repulsa por eles. Mas passa rápido. Não há espaço nas minhas emoções para nada além da dor que sinto por todo o quadro. Os demais colegas vão ao cemitério esperar o sepultamento. Eu fico um pouco mais com a família.

Súbito, o pai vai ao chão. Desmaia. Meu cinegrafista faz a imagem. A família carrega-o e leva-o ao posto de saúde. Pedem que não acompanhemos. Até por obrigação, imposta pelo direito da preservação do uso de imagem, obedeço. Fico feliz que meus colegas já tenham partido. Valendo-se da ignorância dos pobres, eles nunca atendem a esse tipo de pedido quando parte de um desvalido. Guardam sua reserva legal para ilustrados que conhecem a lei. Eles, ditos e diplomados jornalistas, a conhecem (alguns). Todos deveríamos fazê-lo. Reza a constituição da república que a ninguém é facultado o direito de descumprir a lei alegando ignorá-la. Todos somos obrigados a conhecer a lei. Esse é o princípio de qualquer estado de direito. Este mesmo estado onde todos deveriam ter acesso à saúde e a condições dignas de vida.

Antônio segue com a família. É medicado com ácido acetil salicílico. Há risco de infarto. Recebe também benzodiazepínicos. Precisa acalmar-se. Há risco de acidente vascular cerebral.

Sigo para o cemitério. Deixo a família ter o mínimo de privacidade. Passados 20 minutos, eles chegam para o enterro. O corpo, no caixãozinho branco, vem carregado pelos vizinhos, numa procissão pelas ruas, como no interior. Não há carros fúnebres. Não há cerimônia. Meu coração aperta ainda mais com a culpa de estar inserto numa sociedade que não me faculta oportunidades reais de mudar esta realidade, mas me obriga a contemplá-la.. O pai vem atrás de todos, carregado. Ao chegar ao cemitério, que fica no cimo de um monte, não consegue ir, de pronto, até o local onde o corpinho será enterrado. Toma água. Desmaia. Acorda. Antes, porém, que o filhinho repouse no seu jazigo perpétuo, ele chega ao caixão - o pai. Balbucia, entorpecido pela alta dosagem de diazepan, alguns sons incompreensíveis entre choros. Colegas atrasados, de jornal impresso, perguntam-se uns aos outros – a mim inclusive – se dá para extrair algum depoimento dali. Lastimo e me volto novamente para o pai. Uma frase, um fragmento, eu consigo captar; mas não revelo a eles.

- A bicicleta, filhinho, se papai pudesse... ô meu Deus, ô meu Deus.

“É gente humilde, que vontade de chorar”
Chico Buarque e Vinícius de Moraes

7 comentários:

Ângelo disse...

Rapaz, Muito bom texto.

Interessante, bem estilo Nelson Rodrigues de jornalismo. Acho fantástico o jornalismo distante dos "idiotas da objetividade". Jornalismo esse que dá voz ao choro, à emoção. Distante do Copydesk e perto da humanidade.

Excelente, gostei bastante do texto. Comovente de verdade,

É uma pena ver que a forma que os demais jornalistas têm dado emoção às notícias seja apenas a tendenciosa, cruel e excessivamente dramática e irreal manipulação opressiva do sensacionalismo.

Abraços

Tiago Rocha disse...

Vou com Angelírio.

Essa pretensa isenção emocional, derivada do moderno rigor científico, só esterilizou a apreciação dos relatos jornalísticos. Aos partidários inumeráveis dessa corrente, informemos da invenção do supositório informativo, onde a absorção é sintética, eficaz e inequívoca.

Sou mais você com a verve literária vazando o fato propositalmente enviesado, sem privar-nos dos detalhes factuais.

Chorável mesmo o caso.

Valdeir Almeida disse...

Gabriel,

Quando eu era criança, achava que jornalistas eram criaturas especiais.
Eu acreditava, por exemplo, que eles nunca seriam atingidos por balas num tiroteio. E a forma como eles apresentavam a notícia me fazia ter ainda mais aquela certeza infantil. Eles eram robóticos, não expressavam emoção sequer por uma alteração na sobrancelha.

De lá para cá, pouco mudou. O seu texto demonstra muito bem isso.

Olha, fiquei honrado ao saber que você lê o meu blog. Quase não acreditei quando você deixou um comentário lá. Eu acompanho seu trabalho desde quando você estava na outra emissora.

Eu só voltarei a postar no meu blog novamente no mês que vem. É que estou concluindo um projeto que exige minha dedicação integral. Mas logo, logo estarei de volta.

Ah, estou acompanhando o seu blog.

Abraços.

Unknown disse...

Consegui visualizar perfeitamente as cenas... comovente, sem dúvida.
Lembrei-me de algumas vezes em que assisti na tv algumas notícias como esta, a euforia dos reporteres, o desespero como produto. Lamentável.

Ótimo texto, como sempre.

Abraços.

cristinasiqueira disse...

Oi,

Cheguei neste momento de verdade triste.A verdade se perdeu por aí ,se confundiu nos enredos do caos.Arejar com a leitura da lucidez faz bem a saúde.
Até mais,

Cris

Ricardo Aiolfi disse...

seu texto é uma mistura dos bastidores do jornalismo, com a visão humana de um verdadeiro jornalista.

o texto me deixou até sem palavras. quantas vezes vemos na tv histórias do tipo, e não prestamos atenção porque 'foi só mais um'.

há algo de errado na nossa sociedade.


gostei do blog =]

adicionei =]

Caio Marques disse...

Ótimo e triste texto.

Como senti pena dos jornalistas que riram de vc por causa do seu choro. Coitado dos jornalistas. São incapazes de sentir a dor do outro, parece que vivem num mundo acima do bem e do mal.

Quando me perguntam qual a pior coisa em ser jornalista, sempre respondo: é conviver com outros jornalistas! Ô raça maldita e prepotente.

Que bom que vc, meu amigo, não faz parte desse grupo de jornalistas que têm pedra no lugar do coração.

boa semana pra vc!
Abraços