quarta-feira, 15 de abril de 2009

Entre Amigos

Há entre amigos um algo de muito peculiar. Um que de unicidade, que não vai nas outras coisas. Amigos entendem o indizível. Criticam o sagrado e cospem nas suas próprias escrituras. Amigos reescrevem a vida. Eu e alguns amigos estamos com um projeto para espocar dentro em breve. A diversão, ao menos para nós, será garantida. Espero que para todos que nos acompanham. Vai, nesse texto, uma idéia embrionária do que deve ser, animicamente, a atmosfera do novo espaço que desenharemos na blogosfera dentro em breve. Muito breve.

O texto, que aqui segue, é um mini-conto, uma espécie de tira-gosto do que está por vir.

Entre Amigos

MicrosYstem nas mãos, maquaigem mal delineada, feita pela própria irmã, Risoleta, outrora mestre-escola de certa reputação nas hostes do direito, ensaia, em pleno instituto jurídico, uma dança quase sabática. Com uma lata na cabeça, ela sobe numa mesa, na torre de marfim, onde, tempos idos, ensinou, e, girando como um pião, se vê como a madre superiora de sua divindade pagã: Madonna. Quem diria: justo ela, outrora socialista, anti-americanista, anti-quase tudo que não tivesse um que de vermelho, de Fidel. Hoje, tomada por uma alegre sandice, cantarola, num tosco inglês, em falsete: “Can of Water in the head, there goes Maria, there goes Maria..... Up Rio and no tired, for the hand leva a child, there goes Maria”. A melodia e a letra, tiradas de uma música popular brasileira, revelariam apenas a sua confusão mental, mas evocam, entre poucas convivas, uma nostalgia, uma comicidade que só mesmo elas compreenderiam. Algo de quase atávico. Ante uma platéia perplexa de alunos e professores, apenas elas, as três amigas, únicas que não ensinam nem aprendem no instituto, sorriem. Gritam em coro: - “CTRL ALT DEL. Macaco!” - A sentença, uma espécie de código cifrado, comum a elas, esdrúxulo a qualquer outro, iguala esta feminina versão do Quixote ao primata inicial, e é decisiva para fazer do riso gargalhada para as três; ou melhor, as quatro. A Quixotesa sorri ainda mais, desce da mesinha e abraça as amigas. Esquálida, abre um sorriso que lembra a lucidez de outrora, dos tempos pensantes. Mas agora não pensa ou pena. Apenas sorri e congrassa. Há uma confraria festiva, um rito fechado naquelas almas, ainda que aberto aos olhos da platéia incrédula. As quatro, juntas, seguem, com aquela alegria genuína que só os bêbados, quando realmente embriagados, conseguem exibir. E não tomaram nem um trago. A platéia assiste, estupefata. Não emitem um ruído. Não entendem tudo, mas respeitam, pois compreendem a parte essencial do que se passa ali. Entre tropeços e abraços, as quatro seguem. Apenas se amam e se entendem.

Gabriel Pinheiro

terça-feira, 14 de abril de 2009

Tem dias

Tem dias em que tudo é doce
Como se fosse um sorriso;
Que a vida lança olhares,
provoca-nos reflexão.

Tem dias de sim
Tem dias de não

Tem dias em que o mundo ferve,
Como a verve da paixão;
Que os olhares são cegos,
arquipélagos sem fim.

Tem dias de início
Tem dias de fim

Tem dias em que o marasmo,
com seu pasmo adormecido,
deixa o humano dolente,
parvo, como vencido.

Tem dias ganhos
Tem dias perdidos

Não sei bem que dia é hoje.
Quem saberá afinal?
Creio perder vitórias,
lançar ao vento as glórias.

Tem dias lindos
Tem dia escória.

terça-feira, 7 de abril de 2009

A bicicleta

- Não filhinho, papai não tem dinheiro – dizia ele entre lágrimas.
- Conserta minha bicicleta papai – dizia ele mesmo, fazendo as vezes do filho, chorando agora com mais sentimento.
- Me perdoa, meu filho, me perdoa – as mãos no rosto, em concha, tampavam destarte a vergonha. Vergonha da pobreza, de não ter podido atender aquele último desejo. Durante todo este diálogo interno, que ele externava em voz alta, como a querer que aquele grito sussurrado ao mundo, libertasse a sua alma de um pesar do qual só ele pode livra-se, o pai fitava o caixão do menino de 7 anos, morto esta semana no subúrbio de Salvador pela dengue hemorrágica.

Antônio Dantas, vigilante. Nunca pode pagar um plano de saúde para ele ou sua família. Uma mulher e três filhos; agora dois. Um, irremediavelmente ceifado. Passou mal numa quinta. Febre, dor de cabeça. A família medicou a criança. Usaram dipirona. Mesmo sem plano de saúde, eles têm televisão e, entre uma bobagem ou outra, assistem a um jornal, onde entre outras e outras bobagens, alguma notícia se salva. Sabem evitar o ácido acetil salicílico. Sexta feira, o menino passa melhor. Weslei era o nome dele. Fica de cama, vendo televisão. Entre um e outro desenho animado, um jornal - e a dengue de volta. A mãe, Marisvânia, assiste com ele. Desempregada, toma conta do filho. Sábado, ele piora muito. Vomita e começa a convulsionar. A mãe leva a criança ao posto de saúde. De lá, ele é encaminhado para o Hospital João Batista Caribé, o maior do subúrbio, distrito sanitário que tem também o maior índice de infestação de Dengue de Salvador.

- Ele me falou, doutor – diz ela, voltando-se para mim - o médico disse que era só uma infecção de estômago. Mas a outra médica já tinha me dito que podia ser dengue. As plaquetas dele estavam muito baixas (sic) – ressalta, numa prova de que acompanha com real atenção as notícias sobre a dengue, e que chama de doutor até mesmo um simples repórter como eu, não porque traje paletó, ou não apenas por isso, mas também porque os que têm acesso ao mundo que lhes é vetado (a ela, a seu marido e a seus filhos e seus vizinhos) são para ela e para todos os demais excluídos do subúrbio, doutores.

Foram cerca de 24 horas de agonia.

- Porque não transferiram meu filho de hospital, se eles não podiam cuidar? Por que ele não foi para o Couto Maia? – o choro abafa a fala da mãe, que já tem seu corpo abafado, fisicamente, por colegas repórteres, cuja sanha por conseguir a notícia, ou mesmo o depoimento justo no momento de maior dor como uma espécie de troféu ao mau jornalismo que tem sua audiência regada por choro e sangue, não permite que se sensibilizem com a situação. Chamam a isso de distanciamento jornalístico. Eu, que chegara adiantado e já colhera minhas entrevistas previamente, quando os pais estavam mais calmos, acompanhava de longe. Sentia, na dor dos pais, e em tudo naquele evento, uma vergonha muito grande. Vergonha de poder o que eles não podem, vergonha de precisar ter vergonha disso e também, como se não bastasse, vergonha pelos meus colegas. Eu, para entrevistar os pais, busquei, inclusive, chamá-los para fora da casa onde o corpo era velado, de modo que ficassem longe do filho, para que a lembrança, ao menos naquela hora, em que detalham a história, refazem angustiosos caminhos psíquicos, que ali a memória lhes fosse menos pungente, dolorosa. Procedimento inverso ao adotado, lamentavelmente, por alguns colegas, que, para minha vergonha profissional, ainda diziam, na vista dos parentes, aos seus cinegrafistas, que pegassem o menino de fundo na imagem. Os pais em primeiro plano. O corpinho, no caixão branco, de madeira simples, em segundo, cmo paisagem, compondo a cena. O que para eles é cenário, para mim é uma criança, um menino qoe ainda parecia vivo. Acariciado pelos pais o tempo inteiro, tinha os olhinhos abertos e parecia olhar para mim. Parecia, de alguma forma, culpar-me pela sua morte, apontar a mim e aos meus colegas como responsáveis por maximizar a dor dos seus pais. Parecia ter razão.

- Filhinho, perdoa papai, filhinho.
- Eu brinco com ela quebrada mesmo, papai, até o senhor poder consertar.
- Ô meu Deus, perdoa papai filhinho. Papai tinha que comprar comida.

Preciso pôr meus óculos escuros... Preciso esconder o choro... O que meus colegas vão pensar? Que tipo de jornalista sou eu? Onde o distanciamento? Onde a objetividade? Ponho a mão no bolso do paletó. Antes de retirar, lembro que os meus óculos, os que tinha ali aquela hora, não convinha usar. Ray Ban. Caros. Chamativos. Para que agredir ainda mais aquela família? Às favas com os meus colegas. Noto que dois, inclusive, conversam baixinho. Riem e apontam para mim. Uma terceira me mira como se meu choro fosse hipocrisia de político. Sinto uma certa repulsa por eles. Mas passa rápido. Não há espaço nas minhas emoções para nada além da dor que sinto por todo o quadro. Os demais colegas vão ao cemitério esperar o sepultamento. Eu fico um pouco mais com a família.

Súbito, o pai vai ao chão. Desmaia. Meu cinegrafista faz a imagem. A família carrega-o e leva-o ao posto de saúde. Pedem que não acompanhemos. Até por obrigação, imposta pelo direito da preservação do uso de imagem, obedeço. Fico feliz que meus colegas já tenham partido. Valendo-se da ignorância dos pobres, eles nunca atendem a esse tipo de pedido quando parte de um desvalido. Guardam sua reserva legal para ilustrados que conhecem a lei. Eles, ditos e diplomados jornalistas, a conhecem (alguns). Todos deveríamos fazê-lo. Reza a constituição da república que a ninguém é facultado o direito de descumprir a lei alegando ignorá-la. Todos somos obrigados a conhecer a lei. Esse é o princípio de qualquer estado de direito. Este mesmo estado onde todos deveriam ter acesso à saúde e a condições dignas de vida.

Antônio segue com a família. É medicado com ácido acetil salicílico. Há risco de infarto. Recebe também benzodiazepínicos. Precisa acalmar-se. Há risco de acidente vascular cerebral.

Sigo para o cemitério. Deixo a família ter o mínimo de privacidade. Passados 20 minutos, eles chegam para o enterro. O corpo, no caixãozinho branco, vem carregado pelos vizinhos, numa procissão pelas ruas, como no interior. Não há carros fúnebres. Não há cerimônia. Meu coração aperta ainda mais com a culpa de estar inserto numa sociedade que não me faculta oportunidades reais de mudar esta realidade, mas me obriga a contemplá-la.. O pai vem atrás de todos, carregado. Ao chegar ao cemitério, que fica no cimo de um monte, não consegue ir, de pronto, até o local onde o corpinho será enterrado. Toma água. Desmaia. Acorda. Antes, porém, que o filhinho repouse no seu jazigo perpétuo, ele chega ao caixão - o pai. Balbucia, entorpecido pela alta dosagem de diazepan, alguns sons incompreensíveis entre choros. Colegas atrasados, de jornal impresso, perguntam-se uns aos outros – a mim inclusive – se dá para extrair algum depoimento dali. Lastimo e me volto novamente para o pai. Uma frase, um fragmento, eu consigo captar; mas não revelo a eles.

- A bicicleta, filhinho, se papai pudesse... ô meu Deus, ô meu Deus.

“É gente humilde, que vontade de chorar”
Chico Buarque e Vinícius de Moraes